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Foto do escritorJulio Cézar Fernandes

Do desejo à depressão: como a atualidade afeta as vias de motivação de nosso cérebro antiquado?

Atualizado: 26 de mai. de 2022

Em nossa vida contemporânea permeada pela tecnologia, pela abundância alimentar e pela veneração do consumo estamos expostos a uma infinidade de estímulos. Nos dias atuais temos acesso a muito mais informações, maior variedade de alimentos e a uma infinidade de produtos. Temos todo esse acesso em um único ano, que uma pessoa que viveu no início do século XX jamais imaginaria ter tido em toda sua vida. Mas quais implicações essa nova realidade tem para nosso cérebro?

As redes neuronais em nosso cérebro relacionadas aos processos motivacionais foram selecionadas ao longo de milhares de anos para nos guiar a executar comportamentos que pudessem contribuir com nossa sobrevivência. Assim, adaptações cerebrais que privilegiassem a repetição da maior parte dos comportamentos que pudessem nos levar a: suprir déficits calóricos; ter proteção, segurança, diminuir a vulnerabilidade; e nos reproduzir foram sendo selecionadas através de sucessivas gerações. Por conta disso, todos esses comportamentos, quando realizados, resultam em recompensas incondicionais de alto valor em nosso cérebro.




Graças a áreas encefálicas (Área tegmentar ventral, núcleo accumbens) que sinalizam através de neurotransmissores (dopamina) que algo é agradável, fomos capazes de identificar o que queremos e o que é importante que repitamos. Assim se formaram os mecanismos da motivação.

Na realidade atual, a hiper disponibilidade de uma pluralidade de estímulos (táteis, visuais, auditivos, gustativos, etc.) e a incitação de estados motivacionais para acessá-los altera as propriedades de nosso cérebro antiquado com repercussões em nossa volição e em nosso humor. A título de exemplo, o ato de comer é uma ação mediada pela necessidade dinâmica que se chama fome. Essa necessidade direciona o comportamento do indivíduo a buscar e a consumir um alimento. Isto é, esses comportamentos se tornam mais prováveis. E quando o comportamento é apresentado, ele é recompensado com doses de neurotransmissores que sinalizam o prazer (dopamina, serotonina). Para complementar a ideia, a crescente, intrínseca e periódica necessidade de comer do organismo produz um estado motivado, ou seja, produz uma tendência maior do comportamento de comer. Essa necessidade crescente, em outras palavras, fortalece o valor recompensador da comida. E logo que tal comportamento de comer é realizado, é muito provável que a fome diminua ou mesmo cesse. Até que o próprio organismo sinalize a necessidade de comer novamente.

Apesar de termos necessidades que são dinâmicas e facilmente satisfeitas no mundo contemporâneo, ocorre que estamos sujeitos à influência de informações e muita publicidade que direcionam nossa volição (nossa “fome”) e consequentemente, nossas escolhas. Então, o “querer” comer determinado alimento se torna muito maior como resultado da incitação ao consumo de tal alimento, do que pela simples necessidade do organismo. Deste modo, o indivíduo passa não mais a somente buscar saciar necessidades fisiológicas, mas a “precisar”, a “desejar” satisfazer uma expectativa.


A exposição contínua a condições estressantes aumenta a tendência a buscar reduzir esse estado aversivo. Assim, à medida que nossas rotinas humanas envolvem uma exposição crônica a diferentes estressores e muito mais sedentarismo, mais buscamos diminuir essas estimulações aversivas através de comportamentos prejudiciais que promovem a liberação de neurotransmissores do prazer (consumo de alimentos hipercaloricos, drogas, jogos, pornografia). Em termos neurobiológicos, nossos cérebros carecem de suas doses de dopamina e serotonina para retornar a seu estado de equilíbrio diante do estresse. Por conta disso, o precisar comer e consumir acabam sendo comportamentos estimulados facilmente, porque as soluções que estimulam e saciam tais necessidades são oferecidas frequentemente e por todos os lados.

Dito isto, acabamos constatando que estamos inseridos em uma sociedade em que a necessidade, em outras palavras, o “desejo” é constantemente instigado para nos conduzir a determinada finalidade, no caso já citado, o consumir. Além de sermos impelidos a consumir, somos convencidos constantemente de que nós mesmos somos os únicos responsáveis por nossos próprios desejos e motivações. O que não é totalmente verdadeiro, pois o ambiente com o qual interagimos também tem relevância sobre nossos estados motivacionais e consequentemente, no padrão de funcionamento de nosso cérebro. A partir daí, podemos começar a nos questionar então, como um cérebro selecionado ao longo de várias gerações, com grande potencial de performar estados motivados é, atualmente, o mesmo responsável por taxas exorbitantes de transtornos depressivos e de humor? Segundo dados da OMS, estima-se que 280 milhões de pessoas no mundo tenham depressão, em torno de 3,8% de toda a população!

O contexto do mundo contemporâneo é um lugar onde, apesar de existir uma abundância de recursos (reforçadores incondicionais), estes são distribuídos de modo desigual. Além disso, a contemporaneidade tende a ser baseada em uma volatilidade de nossos contextos: um trabalho antes seguro, de repente é substituído por um computador; uma relação que inicialmente era fonte de segurança e afeto, após um período ruim na vida de um dos parceiros, deixa de existir; após uma crise financeira, um lugar que um dia chamamos de casa se torna um espaço vazio com uma placa para alugar. Assim, tais exemplos ajudam a compreender que comportamentos que um dia foram efetivos para dar acesso a recursos como proteção, saciação, e satisfação, repentinamente não mais o fazem.

A constante variação de nossos contextos e da efetividade de nossos comportamentos, produz efeitos negativos profundos em nossos circuitos motivacionais. Pois gera a percepção de incontrolabilidade e impotência, as quais são extremamente estressoras. Assim, o cérebro moderno acaba se perdendo com certa frequência no seguinte apuro: “desejar” x “não poder ter”. Diante desse impasse, estamos sendo estimulados a desejar determinados reforçadores sobre os quais não temos necessariamente muito controle. Tal condição estimula respostas emocionais de frustração, angústia e desesperança que, por sua vez, sinalizam que situações recompensadoras:

  • Não estão mais presentes;

  • Perderam sua função (saciação, saturação) ou;

  • Para serem atingidas demandam um grande esforço.

Assim, o impasse entre desejar e ‘não poder ter’ é uma fonte de estresse crônico resultante da vida contemporânea. E modelos animais que são utilizados para o estudo da depressão demonstram como tais estressores frequentes da vida diária alteram o funcionamento do organismo. É o exemplo do modelo de estresse moderado crônico (Willner, 2016; Willner, 2017), que a partir do estudo com ratos expostos a micro estímulos estressores crônicos (choques, barulhos, luzes) se demonstrou que os animais iam perdendo capacidade de responder a recompensas, e apresentavam um padrão comportamental de anedonia. Assim, as sucessivas frustrações vividas de modo renitente e incontrolável, deprimem gradualmente o humor de uma parcela significativa dos indivíduos.

Finalmente, por mais que o contexto atual moldado por nós humanos seja para alguns abundante, a pluralidade de desejos instigados e de estressores experimentados na busca eterna por sua satisfação nos torna infelizes. Sabendo que nosso contexto influencia nossa volição, temos em mãos um conhecimento essencial para sermos capazes de nos libertar desses desejos artificiais. Os quais se apropriam de nosso cérebro antiquado e terminam por prejudicar nossos circuitos de motivação.





Referências:


WILLNER, Paul. Reliability of the chronic mild stress model of depression: A user survey. Neurobiology of Stress, Swansea, UK, 2016.


WILLNER, Paul. The chronic mild stress (CMS) model of depression: History, evaluation and usage. Neurobiology of Stress, Swansea, UK, n. 6, 2017.


DEPRESSION. In: World Health Organization. 2021. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/depression. Acesso em: 28 abr. 2022.




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